Nunca me achei uma pessoa violenta. Pouco bati em gente na vida, foi sempre mútuo e quase sempre levava a pior, por não usar toda a minha força, não querer machucar, de fato. Mas tem coisas que mudam as pessoas, não sei se isso é bom ou não, mas tendo a pensar que mudança é movimento, então tá valendo.
Se eu cheguei em casa às três da tarde, deve ter acontecido passando pouco das duas. O dia era daqueles em que tu acorda bem sem motivo aparente, fim de inverno no paralelo 30°, quente no sol, vento geladinho. Desses dias em que não se sabe se o torpor é só do melhor sexo inconclusivo da vida na noite anterior, da quantidade de entorpecentes que ainda circula no sangue, se é o sol quente, se é o vento frio, se é a sensação de, mesmo com tudo isso, cumprir as obrigações prosaicas como se fizessem sentido. Fato é, o dia estava fluindo leve e feliz, tanto que fica ridículo (d)escrever.
O livro aberto no meu colo, no ônibus, chamava a atenção. Sempre gostei disso, e sempre gostei de deixar o livro aberto enquanto olhava pra fora, pra depois voltar a ler, sabendo que a pessoa sentada do meu lado, se fosse como eu, estaria curiosa. Fiz isso com Marx, com Cervantes, com Kafka, com Galeano, com Harry Potter e mais uma galera. E agora, com a Denser.
A Denser que, no entanto, me fez, genuinamente, olhar pra fora pra pensar. Pensar em se e como a identificação com aquela mulher tão poderosa e tão insegura se manifestava em mim, sobre como lidar com a castração de ter pensado a vida inteira que não se podia confiar nas coisas que crescem em torno do pau e me ver errada, em ver a Denser errada. Pensar com otimismo que a minha experiência talvez fosse melhor que a dela, e que talvez por isso eu não fosse escrever bem nunca, mas who cares?, to pegando, e to pegando bem, e ninguém tem nada com isso. E me sentindo bonita, limpa e inteligente sem ser louca, os espanhóis que me desculpem, ou pelo menos achando que me curei da loucura de ser bonita, limpa e inteligente e jurar que ninguém percebe.
O conto narrava, entre outras coisas mais profundas, com o perdão do trocadilho, a visão feminina de um doloroso e excitante episódio de sodomia. Eu curtia o fato de que quem sentasse ali ia me achar uma pervertida. Talvez eu seja, mas acho que, justamente por não ser, passar essa imagem me parece divertido, engraçado mesmo.
O cara que sentou do meu lado era perfeito: moleton superbranco lavado pela mãe, marca hip hop, não me pergunte qual, mochila grande vazia, fone de ouvido estourando, gelzinho no cabelo (aquele topetinho cretino espetado pra cima) e uns óculos de surfista, pequenos demais pra cara cheia de espinhas. Ri comigo quando ele sentou, e continuei divagando. O livro aberto no colo, puro exibicionismo. Sim, como se eu soubesse o que é exibicionismo. Como se me ocorresse a profundidade e, nesse caso, o tamanho e a dureza a que o exibicionismo pode chegar, com o perdão de mais um trocadilho. E eu lá, me achando foda pra caralho, brincalhona e inocente na minha feliz viagem de autoconhecimento e autopromoção. Eis que, volto pro livro. E vejo, sem mais, ou melhor, sem menos, a cabeça rosa, latejante e melequenta do pau duro desse filha da puta quase encostando em mim, escondido do resto do ônibus pela mochila gigante.
Não soube reagir, mesmo. Fingi que não vi, enquanto tentava pensar. O terceiro pau em menos de um mês, quem diria! Pra quem dizia que era lésbica, até que o número fica impressionante, when you put it this way. Que put it o quê? Shove it up your own ass, viado de merda, cabaço do inferno, vai comer uma ovelha! pensei. Finalmente, olhei direto pra ele com nojo, disse alto, ô, meu?, e fui pro banco de trás, em silêncio mortal. Ele nem sentou de novo, desceu do ônibus no meio do nada da Bento sem olhar pra trás. Espero muito que com vergonha, mas duvido.
Não consegui mais ler. Não sabia se a culpa não era do livro, e não ia me arriscar. Mesmo que não fosse, hipótese na qual acredito, pra ler já não teria mais cabeça. Só conseguia pensar que tinha acabado de perder a melhor chance da minha vida de humilhar um homem que de fato merecia. Me odiei por não pensar rápido o suficiente. Pra não pensar na minha própria falta de presença de espírito, dividi com o cara (sim, sentei do lado de outro desses, a idiota) do meu lado o que tinha acontecido. Pedindo desculpas por invadir o silencio alheio, falei de uma vez só que o filha da puta tinha tirado o pau pra fora. Assim mesmo. Ele não disse nada. Pensei, beleza, eu também não saberia o que dizer. Antes tivesse ficado quieto. Depois de um tempo, me olhou com cara de espanto/pena/entendo-a-do-cara-tu-é-gostosa-mesmo (nessa hora eu queria capar os dois, com alicate de unha), e disse: “Tem sempre um babaca”. Exato. Ou dois, dependendo do ônibus.
Passei o resto do caminho olhando pro chão, querendo muito, mas muito mesmo, ser a mulher mais horrorosa e nojenta do planeta, pra ninguém mais me olhar, nunca. Desci do ônibus, acendi um cigarro, talvez o melhor da minha vida, e caminhei o mais devagar que conseguia rumo a ração de cachorro e casa.
Sentia a fúria emanando de mim, num crescendo vertiginoso. Sentia o olhar vago, os lábios inchados, as mãos suadas, tudo em mim pronto pra moer a cara de alguém, homem, ele, qualquer um. Por que não enfiei o cotovelo na traquéia dele? A posição era ideal, quando levantei. Por que não fingi que batia uma pro cara e não entortei ele, pra nunca mais ter como nem mijar pra frente? Isso sim ia ser arte. Caminhando até casa, sentia que as cantadas cresciam proporcionais à raiva. Sentia que, quanto mais eu odiasse todos, sem exceção, mais eles me olhavam, mais me queriam. Foi a maior concentração de gracinhas que já recebi na vida, me senti a mulher mais foda do mundo, e a mais podre. Mais orgulho da minha força, do que eu era capaz de fazer com eles, e mais nojo de mim eu sentia, a cada olhada, a cada palavra, a cada ô-lá-em-casa. Na casa da tua vó comendo bolinho, fracassado de merda.
O que finalmente freou minhas punções (Freud estava certo, o recalque é, sim, a raiz da civilidade) foi o vento gelado do fim do inverno no paralelo 30°. Terceiro cigarro em 5 quadras, já na de casa, me peguei pensando que não, há exceções. Há homens bons, corretos, respeitosos, que acabam não permitindo que se odeie o gênero em si simplesmente pela injustiça da generalização. Embora a maioria desses (e dos outros, enfim) possa não te comer bem, há inclusive os que sim, com todo o resto de brinde. Comecei a pensar em como era bom saber que, o fim das contas, existia/existe a possibilidade de um desses da minúscula leva dos que valem a pena se interessar por mim, e que isso, no primeiro momento, é bom, e daí? Me peguei pensando na alegria que é o fato de que despertarei isso nos homens pelo menos pelos próximos 15 anos, se eu me ajudar, claro, e isso me fez bem. Me fez desejar que acontecesse de novo, um dia na vida.
Seria catártico. Por um momento, ter a personificação do lado imbecil de todos os homens bons que um dia fizeram algo imbecil e mereceram apanhar, morrer lentamente e com muita dor, e que se salvaram porque alguma mulher se deu conta de que eles não eram só isso. Ter a personificação legítima da coisa que cresce ao redor do pau, à qual se aplica toda e qualquer generalização negativa, todo e qualquer clichê, um homem no universo que se pudesse odiar plenamente. E soube, com tudo de mim, que se esse baldinho de moléculas de instinto detestáveis chegasse perto de mim de novo, ia à forra. Arrebentava de porrada, com gosto e maquinaria pesada. Mostrava quem é que manda nessa merda. E, por toda e qualquer mulher que já foi invadida por um pau, fisicamente ou não, e pela Denser e o tipo de cara que faz com que mulheres foda se sintam lixo, matava rindo, devagar, sem culpa.