O inverno estava no fim, mas os últimos dias tinham sido os
mais frios dos últimos tempos. Eu tinha dormido muito pouco, vinha escolhendo
mal a roupa há dias e o frio intensificava a dor nas costas e o peso no peito. Nó
na garganta, enjoo e fome. Nem fumar eu conseguia. Caminhei devagar pela meia
quadra até a parada de ônibus, deixando o vento frio entrar nos buraquinhos da
lã do blusão. Pensei naquelas meninas depressivas que se cortam e decidi que aquele
frio vinha bem. Se ficasse doente, bem doente, não seria minha culpa não poder
trabalhar, estudar, ganhar dinheiro e cuidar de tudo. “Tem que descansar, moça”,
diziam sorrindo os médicos imaginários.
Cumpri as tarefas daquele dia, como nos anteriores,
minimamente. Tentava sorrir para os colegas. Demonstrar tudo assim, a céu
aberto, é coisa de gente que não se controla. No trabalho, tentava não deixar aparecer
que fazia quase nada. Às vezes, quando chegava ao limite do cansaço, usava o
cabelo no rosto para disfarçar um cochilo nervoso.
Quando saí do trabalho já estava escuro. Durante o ano
anterior eu tinha o cuidado de não sair muito tarde porque levava o computador da
empresa para casa. Mas nos últimos dias, computador no concerto, eu tinha
voltado a sair do trabalho à noite. Não tinha nada de valor comigo – aliás,
nunca tinha, além do computador, que não carregava mais – e, como sempre, subia a lomba distraída, pensando em alguma desculpa para escapar do que quer que
fosse que eu tinha que fazer depois.
Perto da esquina percebi que alguém tinha se aproximado de
mim. Um homem, mais ou menos do meu tamanho. Não posso dizer que parecesse
perigoso, mas eu realmente não estava prestando atenção. Perguntou as horas. Abri
o bolso externo da pasta para pegar o celular, e ouvi, mais perto e mais baixo,
a ordem clássica. Olhei para ele. Tinha a minha idade, talvez menos. Fedia um
pouco, de perto. Estava assustado, mas convicto.
Não sei o que me fez não obedecer. Não sei o que me faria obedecer.
Por reflexo, eu disse que não e caminhei com pressa.
Em meio segundo, senti com todas as forças que existia a
possibilidade de morrer em uma situação assim. Sabia que era covarde, mas naquele
momento a ideia parecia genial. Uma coisa assim como inutilizar um aparelho
eletrônico para ele não estragar outra coisa. Parecia uma troca viável. Caminhando,
senti um calor na garganta que parecia choro. Ri de mim mesma, “não acredito
que estou chorando porque ele não me matou”.
Só entendi quando senti o puxão na bolsa e vi o vulto que me
ultrapassou correndo. O calor vinha de um estrondo, e minha boca enchia de uma
gosma fina e quente. As lágrimas de frustração e raiva, se tivessem sido reais,
teriam se transformado naquele choro de alívio que há anos eu não conseguia
mais soltar. A única coisa que me impedia de relaxar era uma preocupaçãozinha no
fundo, que eu sentia diminuir quando o tempo passava.
Sorri quando vi as luzes dos postes refletidas no líquido
que escorria pela calçada, no sentido da descida. “Agora sim, acho que não dá
mais tempo”.