quarta-feira, 26 de setembro de 2012

fan fiction


O inverno estava no fim, mas os últimos dias tinham sido os mais frios dos últimos tempos. Eu tinha dormido muito pouco, vinha escolhendo mal a roupa há dias e o frio intensificava a dor nas costas e o peso no peito. Nó na garganta, enjoo e fome. Nem fumar eu conseguia. Caminhei devagar pela meia quadra até a parada de ônibus, deixando o vento frio entrar nos buraquinhos da lã do blusão. Pensei naquelas meninas depressivas que se cortam e decidi que aquele frio vinha bem. Se ficasse doente, bem doente, não seria minha culpa não poder trabalhar, estudar, ganhar dinheiro e cuidar de tudo. “Tem que descansar, moça”, diziam sorrindo os médicos imaginários.

Cumpri as tarefas daquele dia, como nos anteriores, minimamente. Tentava sorrir para os colegas. Demonstrar tudo assim, a céu aberto, é coisa de gente que não se controla. No trabalho, tentava não deixar aparecer que fazia quase nada. Às vezes, quando chegava ao limite do cansaço, usava o cabelo no rosto para disfarçar um cochilo nervoso.

Quando saí do trabalho já estava escuro. Durante o ano anterior eu tinha o cuidado de não sair muito tarde porque levava o computador da empresa para casa. Mas nos últimos dias, computador no concerto, eu tinha voltado a sair do trabalho à noite. Não tinha nada de valor comigo – aliás, nunca tinha, além do computador, que não carregava mais – e, como sempre, subia a lomba distraída, pensando em alguma desculpa para escapar do que quer que fosse que eu tinha que fazer depois.

Perto da esquina percebi que alguém tinha se aproximado de mim. Um homem, mais ou menos do meu tamanho. Não posso dizer que parecesse perigoso, mas eu realmente não estava prestando atenção. Perguntou as horas. Abri o bolso externo da pasta para pegar o celular, e ouvi, mais perto e mais baixo, a ordem clássica. Olhei para ele. Tinha a minha idade, talvez menos. Fedia um pouco, de perto. Estava assustado, mas convicto.

Não sei o que me fez não obedecer. Não sei o que me faria obedecer. Por reflexo, eu disse que não e caminhei com pressa.

Em meio segundo, senti com todas as forças que existia a possibilidade de morrer em uma situação assim. Sabia que era covarde, mas naquele momento a ideia parecia genial. Uma coisa assim como inutilizar um aparelho eletrônico para ele não estragar outra coisa. Parecia uma troca viável. Caminhando, senti um calor na garganta que parecia choro. Ri de mim mesma, “não acredito que estou chorando porque ele não me matou”.

Só entendi quando senti o puxão na bolsa e vi o vulto que me ultrapassou correndo. O calor vinha de um estrondo, e minha boca enchia de uma gosma fina e quente. As lágrimas de frustração e raiva, se tivessem sido reais, teriam se transformado naquele choro de alívio que há anos eu não conseguia mais soltar. A única coisa que me impedia de relaxar era uma preocupaçãozinha no fundo, que eu sentia diminuir quando o tempo passava.

Sorri quando vi as luzes dos postes refletidas no líquido que escorria pela calçada, no sentido da descida. “Agora sim, acho que não dá mais tempo”.